quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A SOFISTICAÇÃO DO FEELING



Enéias Ribeiro
é um músico que leva o Blues na alma e no coração. Ele transmite paixão quando fala sobre música, quando fala sobre o instrumento que escolheu para enfrentar a vida: a gaita. 
Ele fala sempre com amor sobre a cultura em geral: seja sobre livros, filmes, peças de teatro e discos.

Nesta entrevista reveladora, o também luthier e professor conta um pouco sobre a sua trajetória nesses 15 anos de estrada.

Confira, porque ficou muito legal!



Enéias Ribeiro, como surgiu o seu interesse pela gaita?

R: Não sei precisar, arrisco dizer que gaita sempre me fascinou. Depois fiquei sabendo que aquele som que me soava tão familiar era predominantemente blues. E quando conheci um pouco da história desse gênero musical fiquei ainda mais fascinado. Lembro de assistir uma peça de teatro e ficar emocionado com a trilha sonora. Depois da peça o pessoal tava no bar tomando cerveja e ali acabei descobrindo que o som de gaita da trilha era de um cara chamado Charlie Musselwhite. Foi o inicio de uma jornada sem volta.


A Pedrock Press fala bastante de rock em suas postagens, e o que mais vemos são os músicos reclamando da cena rock 'n roll, e no blues, qual a sua opinião sobre a cena blues?


R: Vejo o pessoal reclamando bastante das “panelinhas”. E de fato não existe uma cena de blues propriamente dita, o que existe são pequenos festivais, bares que tem blues em sua programação e cada um faz sua própria cena, monta seu próprio festival ou segue fazendo seus próprios shows. Ou seja, cada um na sua “panelinha” mesmo. Por outro lado vejo muitos iniciantes sem paciência de trilhar um caminho sólido e consistente, querem “queimar” todas as etapas, começa a fazer shows na semana passada e já quer o mediático reconhecimento, dominar a cena e quiça ser considerado um ícone. Não costuma funcionar assim, precisa ter paciência e continuar trabalhando. Até pode acontecer, mas dificilmente alguém é consagrado de primeira.


Sei que essa pergunta não é fácil (risos), mas quantas bandas você já teve? Quais foram as que você mais se identificou?

R: Nossa, me deixe pensar...no mínimo umas cinco bandas além dos projetos duos. Não me identifiquei tanto com as bandas pelas quais passei, a menos que eu monte minha própria banda será sempre um projeto do vocalista, a banda costuma tocar o que o vocalista quer cantar. Me identifico muito mais com os projetos de duos porque daí tem espaço para colocar um repertório voltado mais para a gaita, com destaque maior para o instrumento.


Fale um show predileto que você tocou e um que você assistiu:

R: É mais fácil dizer o que assisti, de longe o da Sharon Jones no Festival de Blues de Paraty em 2015, até as backing vocals eram sensacionais. O vozeirão da Sharon estremecia tudo e ela tinha uma energia e uma força de arrepiar, arrancando os sapatos e jogando para os fundos do palco, rodando a cabeleira e se comunicando com o público com tanta firmeza, aquilo realmente me derrubou, vai ficar marcado. Dos gaitistas gosto dos shows do Andy Just, ele tem muito carisma e transmite uma energia que envolve o público. E realmente não sei dizer o show predileto em que toquei, o importante é ter retorno pra gente se ouvir legal, tendo isso já é mais do que meio caminho andado para um bom show.


Se pudesse citar 5 discos para o pessoal conhecer e aprender sobre o blues, quais você indicaria?

R: Para começar posso citar alguns que gostei muito como Sonny Terry, que é muito conhecido por fazer dupla com Brownie McGhee, mas o Cd que mais me marcou - e o curioso foi que achei esse disco a preço de banana nos cestos de lojas do centro de São Paulo – foi do Sonny Terry com o guitarrista Lightnin’ Hopkins, ouvi demais esse cd, foi meu primeiro cd de gaita blues que eu comprei na vida. O “two trains runningum” do Brendan Power ouvi bastante, esse é dos poucos discos em que o Brendan tá tocando blues, geralmente ele toca música celta e é incrível porque se você quiser tocar como o Brendan você precisa de gaitas especiais, com modificações específicas, não é com uma gaita comum. Outro disco que é lindo é o “Friday Night Fatty” do Bharath and his Rhythm Four. Também me marcou o “Safra 63” do Blues Etílicos. Mas sua pergunta é uma indicação para o pessoal aprender sobre o blues, então eu indicaria todos do Muddy Waters e os gaitistas que tocaram com ele: James Cotton, Little Walter, George “Harmonica” Smith e Jerry Portnoy, pode escutar sem moderação, a verdadeira escola do blues.


Você talvez seja um dos poucos gaitistas que também constroem o instrumento (luthier), como surgiu esse interesse em construir o seu próprio instrumento de trabalho e diversão?

R: A princípio foi uma curiosidade de querer entender e saber como a gaita funciona, mas conforme fui evoluindo como instrumentista acabou sendo uma questão de necessidade. Quando a gaita quebra, primeiro vem a procura pelo escasso profissional que é o bom luthier de gaita, depois enviar a gaita e daí esperar até o luthier fazer seu trabalho e normalmente o luthier tem muito trabalho, o que significa que minha gaita não vai chegar e já ser feita, tem outros clientes na minha frente e tudo isso pode levar um tempo do qual não disponho. Muitas vezes precisamos de urgência, a gaita quebrou e tem show pra ser feito e nenhum luthier num raio de centenas de quilômetros. O que fazer? Eu mesmo tenho que me virar. Por isso comecei a fazer os raros cursos que apareciam até o dia que recebi o convite pra trabalhar numa fábrica de gaitas e foi aí que desenvolvi a plena função de um luthier que é literalmente construir o instrumento.


Aqui na Pedrock nós temos a pergunta clássica "o que é o rock pra você?", mas agora vamos mudar um pouquinho e mandar: o que é o blues pra você?

R: É a cultura com a qual me identifico, a arte é algo poderoso porque tem valor humano, ela ultrapassa barreiras e é atemporal. A arte mesmo não é institucional, não é formalizada, ela pertence às ruas, ao povo e acolhe qualquer um que com ela venha a se identificar, mesmo que momentaneamente.


Você também é professor de gaita, como tem sido esse trabalho com os alunos interessados em aprender sobre esse maravilhoso instrumento?

R: Sempre gostei de ensinar e a gente aprende muito passando nosso conhecimento adiante e outras vezes com o próprio aluno que traz questionamentos interessantíssimos que eu nunca havia pensado antes. Outra coisa admirável é a democracia que a música proporciona abrangendo todas as classes sociais e do exercício constante de auto controle do professor não apenas em relação de respeito ao ritmo de aprendizado do aluno – paciência é algo que precisa ser inerente ao bom profissional - mas também respeitar o outro como ele é. Tenho alunos de gaita evangélicos, da igreja assembleia e testemunha de jeová. Tenho alunos de gaita policiais, militar e sargento. Aluno cego, piloto de avião ou com problemas mentais. Japonês, negro, branco, azul claro e escuro, cor cinza ou sei lá que cor. De culturas das mais variadas e formas de pensamentos completamente dissonantes da minha e até aluno que não suporta Blues. Alunos que bebem e alunos sóbrios. Aluno que falta na aula porque estava na loucura. E também posso dar aulas para bandidos, para artistas ou donas de casa. Nunca tive problemas com ninguém.

Seus gaitistas prediletos: 

R: São muitos, falando pela ordem que me vem na mente: Charlie Musselwhite com seu agudo belíssimo e impactante, Kim Wilson com seu blues tradicional, Mark Hummel com seu swing, William Clarke visceral e necessário. Os gaitistas de timbres marcantes como Gary Smith, Sugar Ray Norcia e Rod Piazza. Tem também os mais modernos que são Pat Ramsey, Andy Just, Mark Ford e Jason Ricci. O blues melódio do Steve Baker. Flávio Guimarães a grande referência brasileira. A lista é gigante e ainda nem falei dos caras que começaram tudo isso, a raiz que é Sonny Boy, Little Walter e Big Walter Horton. A rítmica alegre do Blues rural do Sonny Terry é outra coisa fascinante. Na música country gosto demais do Charlie McCoy e Norton Buffalo. O Feeling contagiante do James Cotton. São muitos os gênios da gaita, Howlin’ Wolf um gaitista de feeling e personalidade. Pra finalizar não posso deixar de citar o grande gênio da gaita cromática blues, George “Harmonica” Smith.

Qual a maior dificuldade que você encontra no seu trabalho tanto de músico, como luthier e professor?
 
R: Na música integrar uma banda nunca é fácil, além de pensarmos diferentes e de termos gostos e inclinações diferentes, invariavelmente acabamos nos esbarrando num tal de “ego inflado”. Muitos músicos são megalomaníacos, especialmente solistas e vocalistas. Uma falta de capacidade de perceber que o outro também existe, acontece de um instrumentista solar ininterruptamente e simplesmente não passar a bola pro colega que também precisa solar. O cerne da questão é controlar melhor esse narcisismo que não enxerga o outro. Como luthier a grande dificuldade são os próprios colegas de profissão que não respeitam o seu trabalho. Tudo bem pedir desconto, a gente quer ser legal e dá um desconto mas eles nunca estão satisfeitos e continuam “chorando” o preço, vergonhosamente querendo levar vantagem, não valorizam o seu trabalho, querem tudo e não querem pagar nada. É triste. Isso não acontece em outros países, nos Estados Unidos por exemplo, eles pagam o preço pedido e pronto. Valorizam o profissional, é outro nível de educação. E a grande dificuldade como professor sem dúvidas são os alunos muito afoitos, não tem paciência de escutar e o aluno que não escuta também não aprende.

Muito obrigado, Enéias pela entrevista! Fique à vontade para falar suas considerações finais...

R: Gostaria de falar do equilíbrio entre técnica e feeling. No blues se fala muito em feeling, mas só o feeling não resolve nada. Se fosse assim qualquer pessoa poderia ser qualquer coisa, já que sentimentos é comum a todos: Ator, caminhoneiro, escritor, recepcionista, cantor e etc. Arte pra mim é a sofisticação desse feeling. A técnica necessária para expressão de sentimentos diversos - complexos ou não. Um bom escritor por exemplo lê muito, tem a sofisticação do vocabulário. Logo vai se expressar melhor. Dom só tem efeito quando lapidado e isso serve para qualquer coisa.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

A VACINA? É O HEAVY METAL DO VÁLVERA!



O Válvera está de volta com o álbum mais pesado da carreira, honrando os mestres do heavy metal.


Após o aclamado Back To Hell 

O álbum que levou o Válvera para voos mais altos- uma turnê europeia, parcerias pelo mundo todo, a banda também atingiu outros fãs, depois de ter feito a difícil mudança de português para inglês em suas letras (o primeiro disco ainda era na língua de Pedro Álvarez Cabral), chegou a hora da banda se consolidar como uma das principais do país da Cloroquina.

Glauber Barreto (voz e guitarra), Rodrigo Torres (guitarra), Gabriel Prado (baixista) e Leandro Peixoto (batera) fizeram um belíssimo disco chamado Cycle of Disaster. Esse é o terceiro da discografia da banda que foi fundada em 2010, nada melhor que comemorar esses dez anos lançando um trabalho que ficará na história da música pesada do Brasil.
Uma observação: Jesiel Lagoin, ex-baixista da banda, gravou as faixas do álbum. 

O primeiro single desse novo trabalho "Bringer Of Evil",  teve muitas críticas apontando que o Varva (como é popularmente conhecida a banda) encontrou o seu som, o seu estilo, nessa música. O jornalista dessa resenha também concorda. Como diria o gênio narrador Sílvio Luis: confira comigo no replay:


O Válvera após intensa divulgação da primeira música do Cycle Of Disaster, resolveu nos presentear mais uma vez com uma das canções mais bem trabalhadas do novo álbum, "Glow Of Death", aqui podemos ouvir as diversas influências do grupo: desde o clássico metal até as bandas mais novas como Machine Head, Gojira, Mastodon, e por aí vai descendo ladeira acima (com o Varva é assim, a gente inverte até o dito popular)...


A música relata o episódio ocorrido em Goiânia, do Césio 137, onde pessoas, inocentemente, foram contaminadas por radiação de um aparelho que estava perdido em um ferro-velho, catadores levaram para casa, e centenas de pessoas sofreram com o chamado "Chernobil brasileiro".
A canção do Válvera tem vários andamentos, uma afinação diferente dos outros álbuns da banda, o disco inteiro está assim: mais potente, mais soco na cara, vai agradar muitos fãs de metal.

São 9 canções que não deixam o ouvinte respirar, quando achamos que vem o momento da calmaria, a tempestade aparece toda hora, e se você acha que vai ficar incólume aos riffs do Glauber (aliás, o que esse cara está cantando é uma barbaridade) e do Rodrigo, você está totalmente errado. Como um furacão que destrói tudo onde passa, mas mesmo assim você quer ver a sua beleza.

O disco abre com "Nothing Left To Burn", um thrash metal de enlouquecer, o vocalista berra "burn!", e começa um dos melhores discos que ouvimos na vida.
Os dois guitarristas estão tinindo, a dobradinha do Varva já é característica, faz parte do estilo do quarteto, um completa o outro.
O batera Leandro é um dos mais rápidos do estilo. Esse é o primeiro disco do músico com a banda, e tem tudo pra evoluir nos próximos álbuns.

A segunda faixa leva o mesmo nome do disco: "Cycle of Disaster", confesso pra vocês que, escutei o começo da música várias vezes pra entender o que esses quatro manos fizeram aqui. E meus olhos encheram de lágrimas, pois o peso de uma banda de metal me emociona quando compõem uma parada diferente e bem trabalhada. O álbum já poderia parar aqui. "Quatro músicas, Pedro?! Tá maluco?". Acho que tô mesmo. Após ouvir esse disco, você vai ficar doido, querendo ouvir de novo, de novo, e de novo...

O ser humano extermina os animais, trai o amigo, é ingrato, passa por cima de qualquer um, rouba a população, querem nos tirar a sensibilidade, querem acabar com o amor, para todos esses sentimentos ruins, eu vou escutar essa música "Cycle Of Disaster" e me libertar.

"The Damn Colony" aborda o Holocausto Brasileiro. Se você nunca ouviu falar dessa verídica história, prepare-se para uma tragédia sem fim. Mais de 60 mil mortes em um hospício. Os pacientes morriam de fome, frio e eram torturados nesse hospício nos anos 60 e 70. Se você achou que o Válvera está muito pesado nesse terceiro álbum, agora entenda o porquê. O Brasil nunca foi um país da bossa-nova, o Brasil é heavy metal até o final dos tempos.
O refrão dessa música fica na nossa cabeça. O começo da canção nos remete a um médico dizendo "aqui ninguém poderá sair...".

A quinta canção,"All Systems Fall", começa num bate-cabeça incrível, quem tem cabelo ou quem não tem, impossível não mexer, e impossível ficar parado com esse petardo. Rodrigo Torres apavora com os seus solos, mas calma aí, que os solos mais bonitos do disco estarão na próxima faixa.

Eu conheço os caras do Válvera faz 5 anos. Talvez um pouco mais. E nunca me esqueço quando assisti o show da banda pela primeira vez em 2015. Me trouxeram uma alegria impagável por estar ouvindo um som pesado e com muita qualidade. 
Eu escrevo isso, porque a sexta faixa do álbum "Born A Dead Planet" é a melhor música que eles já fizeram em toda a sua carreira. E mais uma vez fiquei comovido com uma música. Meu caro amigo leitor, quando você for escutar, repare nos riffs, se ligue nos solos, é uma das melhores músicas de metal que você vai ouvir. O lyric video da obra-prima está para sair, fique ligado.

"O.S 1977" não deixa a poeira assentar, muito pelo contrário, faz o espírito dos músicos inspirados continuar a nos surpreender.

"Lute pela sua vida", essa é a tradução do nome da oitava canção do álbum, é perfeita para definir a carreira da banda. Eles surgiram no interior de São Paulo, e desde 2013 vieram pra São Paulo tentar fazer uma carreira digna, e para isso já passaram por vários perrengues, falta de grana, falta de comida, falta de luz, gás, troca de integrantes, mas eles estão aí, em plena pandemia desse vírus maldito, dando de presente para os amantes do metal, um disco que daqui a 10 anos será considerado um clássico, e quem será chamado de mestres será o Válvera!